Medo e vergonha de ser carioca

Desabafo de uma carioca "da gema" sobre a onda de violência no Rio de Janeiro.


Pela primeira vez, em 34 anos, tenho medo de ser carioca

Sou carioca. Aquelas que chamam 'da gema'. Filha de pais cariocas, nascida e criada na zona norte da cidade e hoje moradora da zona oeste (na banda 'pobre' da zo). Sempre andei pelas ruas da cidade, vasculhei cantinhos e gostei de conhecer lugares que nunca tinha ido aqui. Assim como pai, que é apelidado de 'Guia Rex ambulante', também mantenho um 'Q' dessa linha curiosa de ser. E assim cresci.

Nunca fui assaltada na minha cidade. Cresci em uma época onde podia ficar sentada até altas horas na calçada de casa conversando com os amigos sem medo da violência. Pelo menos não daquela aparente. Saía com grupo de amigos para passear, beber ou dançar e voltava à pé para casa sem preocupação altas horas da madrugada sem que fôssemos perturbados.

Na adolescência presenciei via televisão arrastões nas praias cariocas, mas nunca estive presente em nenhum deles. Foi uma 'onda', depois parou. Na época do governo do falecido Leonel Brizola (quando as crianças ficavam o dia inteiro estudando ou praticando esportes nos CIEPs da vida), as pessoas reclamavam que ele subia os morros para participar de 'churrascos com os traficantes', porém, não tínhamos assaltos e violência explícita no meio da rua. Os únicos lugares violados eram agências bancárias e o dinheiro levado somente o do cofre, não dos correntistas presentes.

Em Irajá na entrada para Av. Brasil, depois do ataque

E olha que reclamavam dessa época. Mas mesmo assim também foi outra 'onda', passou. Afinal a violência está presente em todos os lugares do mundo há milhares de anos. Sempre esteve e sempre estará. Mas nunca tive aquele medo congelando a ponto de não querer sair de casa ou sair olhando para os lados com receio de ser espreitada por algum bandido. Não era assim.

Assalto era 'luxo' da madrugada ou pelo fim da noite. Ser abordado em plena luz do dia era algo considerado ousado para qualquer bandido. E evitado. Mas hoje isso virou rotina. Não existe mais 'hora de assalto'. Qualquer hora é hora. Não querem saber se você tem dinheiro ou não, querem é levar tudo o que tem, se não for de valor, levam-te as roupas.

Mas não ficamos parados só nos assaltos. Assassinatos, estupros, brigas e tantas outras formas de violência começaram a se proliferar no Rio. Eu assistia de longe, pela TV, acompanhava pelo rádio, lia nos jornais, mas nunca tive o medo irracional de andar pelas ruas. Continuei a vida como todos devem continuar. Mas esse cenário mudou.

Estamos em guerra, só não assumimos ainda...

Nos últimos anos a violência tomou uma proporção simplesmente cinematográfica. As favelas hoje são sinônimos de bandidagem. Os moradores descentes que vivem por lá não são mais respeitados nem pelos próprios bandidos (coisa que antigamente era alvo principal de proteção). As pessoas estão com medo de sair de suas casas. O número crescente de pacientes que estão desenvolvendo quadros depressivos com crises de pânico é assustador. O carioca está com medo de ser carioca.

As praias já não ficam mais lotadas. As baladas agora acabam mais tarde às duas da madrugada. Ninguém anda mais sozinho pelas ruas. Parecemos animais andando em bando com medo de que outros bandos nos abordem a qualquer momento.

Ontem, na volta pra casa, meu ônibus seguia pela Av. Brasil em direção a Campo Grande (onde moro atualmente) e fiquei chocada (e com medo pela primeira vez) com as cenas que eu assistia nas ruas. Nunca vi tanto policial junto. A cada cruzamento um grupo fazia Blitz e o engarrafamento que já é gigantesco no início da noite piorou.

Ônibus e carros sendo incendiados diariamente...

Olhando pela janela ficava horrorizada com cena que parecia ser iluminação de Natal pela cidade, mas feita de fogo. Isso mesmo. Av. Brasil iluminada com carros, vans e ônibus incendiados por todo caminho do centro até Vila Kennedy. A cidade está em choque. Eu estou em choque. Todos estão com medo. Eu estou com medo.

Outra opção que tenho para ir para o centro é pegar o trem, mas cruzar pela comunidade da Vila Vintém é algo inviável, pois há dias estão em conflito com a polícia. Os trens param e não tem hora para passar por ali. Nós que moramos na zona oeste, na banda pobre (de Padre Miguel para cima) estamos ilhados em nossa própria cidade. Não podemos seguir pela Brasil por conta dos incêndios, não podemos pegar trem por conta do tiroteio. Estamos vivendo uma verdadeira guerra civil, mas o governo não assume que isso esteja acontecendo e quem paga (com a vida) somos nós, a população.

Hoje não pude ir ao escritório porque tive uns problemas de saúde e tive que ir ao médico. Mas todos os dias quando saio daqui, principalmente nas últimas semanas, saio com medo. Medo de não voltar para casa ou de assistir uma cena que marque minha vida.

Até quando Rio?

Passei em frente ao cruzamento em Irajá ontem, aquele onde os carros foram incendiados às 06am. Olhei pelo vidro e vi as carcaças jogadas na beira da estrada. Todos estamos congelados. Não sabemos o que fazer.

E ainda querem que sediemos Copa do Mundo, Olimpíadas etc. Não temos condições nem de resolver nossos problemas pessoais e ainda queremos arcar com segurança de povos que vivem em conflitos por séculos. Povos que vivem de se matar por prazer. Como iremos prover segurança para países como Estados Unidos, Irá, Iraque, Japão e outros, se não conseguimos prover segurança para nossas próprias crianças que são alvejadas dentro da sala de aula quando estão tentando ser alguém no futuro?

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Pela primeira vez estou com medo de ser carioca. Pela primeira vez estou com vergonha de ser carioca. Pela primeira vez estou em pânico pela minha vida e pela vida daqueles que eu conheço. Simplesmente... Estou com medo...

Fotos: G1 e O Dia.
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